Numa família de onze filhos. Não é time de futebol, mas são onze filhos. Tem de tudo um pouco. Mas a nossa família é o contrário, pouco de um tudo. Tudo de bom e de maravilhoso.
Onze energias conspirando com o Universo. Onze digitais. Onze vozes. Onze!
Maria. Antigamente em toda casa era obrigatório, primogênito mulher, tinha que se chamar Maria. (Mãe de Jesus, esposa de José). Ana (avó de Jesus) e nossa também. Antonio (nascesse com o cordão umbilical laçado no pescoço, para não morrer enforcado. Acreditava-se no corte
desta sina traçada no destino do menino ou menina. João (precursor e primo de Jesus). Raimundo (Santo Padroeiro da cidade) e tio. José (esposo de Maria e pai adotivo de Jesus). Isabel (mãe de João, prima de Maria) e nossa tia. Antonia (a sina do enforcamento cortada pelo nome, já explicada anteriormente). Francisca (Promessa a São Francisco de Assis). Luís (nome tradicional na família, nome de tio). Maria, na outra ponta, encerrando a produção. Maria do Socorro (Socorro, ajuda, apoio), com quem se pode contar, é a mais nova, é a que tem mais força para agir. E assim vão traçando o destino e a sina de cada um a partir do nome escolhido para o batismo.
Um nome, uma vida, uma história. Onze nomes, onze vidas, onze histórias.
Não contarei a história de cada um porque talvez não seja fiel a tantos detalhes.
Escolho um que teve a sua história mudada pelo pé.
Muito antigamente em cada família, tradicional e de posses, deveria um dos filhos ser padre, outro advogado e um outro “doutor”, isto é, médico.
Como éramos muito pobres e morávamos longe, até para ensiná-los já ler já era uma missão quase impossível. Escola não havia. Alguém que se propusesse a ensinar tinha que contar com a boa vontade de mais alguém para hospedá-lo e garantir refeições.
Assim desarnavam os jovens. Era esse o nome dado para alfabetização.
Nosso Tio, Joaquim de Sátiro, por parte de pai, vendo o rapazinho crescer com o seu pé torto (não era o rei Mordred, mas tinha o pé torto), chegou para o irmão Chico e disse que o menino
Não tinha condições de trabalhar na roça por causa do pé.
Morando no sítio Boa Vista que é bem mais próximo da cidade levou o jovem para a sua residência.
O garoto estava com dezessete anos. Montava o animal todo dia e ia para a rua estudar. A professora era D. Elisa. Chegou com fome e sede de saber. Uma inteligência aguçada foi logo ajudando a mudar o seu destino. Primeiro Livro, Segundo Livro...
Naquele tempo não havia seriação. D. Elisa dava aulas particulares. No final do mesmo ano presta o exame “vestibular” para a Admissão ao Ginásio. Era uma prova chamada exame de admissão. Se passasse entrava para o Ginásio São Raimundo Nonato. Único na cidade.
Prestou exame, passou, entrou. Quatro anos após estava seguindo para Fortaleza para fazer o Segundo Grau, que se chamava Científico. Três anos. Três anos de muita luta e muito estudo. Último ano. Ano de prestar o verdadeiro vestibular e um ano de cirurgias para ajudar a melhorar o pé. Desenvolver não iria mais. A perna também não esticaria, mas pelo menos viraria o pé para a posição devida.
O rapaz inteligente, estudioso e responsável não decepcionou. O tio patrono não teve o prazer
de ver o feito, mas pediu antes de partir para a outra dimensão ao seu filho Pedro, que já era médico, que desse o anel ao rapaz. Queria dizer e disse para que o filho ajudasse na missão que ele havia iniciado. Obediente, o Dr. Pedro acolheu e concluiu o objetivo do pai. Em 1975, o menino, por causa do pé, viu seu destino mudado.
Ganhou o seu Diploma de Médico. Voltou para Várzea Alegre. Foi ajudar a Dr. Pedro na Casa de Saúde São Raimundo Nonato, onde trabalha até hoje. E onde toda criança que nasce com o é torto ele ajuda a arrumar. Porém, como dizia Chico Anísio “a ignorância é que astravanca o País”, muitos pais ao chegarem a casa retiram o gesso por pena do bebê. Não sabem que a exclusão, discriminação e baixa auto-estima como consequência virão depois.
Se ele é feliz não sei. Sei que o seu destino foi mudado por causa do pé.
Dos outros dez filhos, três concluíram o nível superior, três o ensino médio, um o fundamental e três apenas desarnaram. Nenhum ficou analfabeto.
Todos procuraram traçar seus caminhos, construir suas histórias, seguir ou mudar seus destinos conforme Deus quis ou o Universo conspirou.