Palavras de amor, palavras de afeto, palavras de alegria, palavras de amizade, palavras de carinho. São tantas palavras... Palavras, palavras...


quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

ZANGA DE VELHO


Quando eles se casaram, no ardor dos seus 20 e 18 anos (ele e ela), o mundo lhes parecia azul como viu Armstrong lá das alturas. Se não era assim, era melhor: - azul com umas bolinhas douradas! casamento "de gosto" de ambas as famílias, foi festa para durar três dias. Perus, capotes, capões cevados, um capado e mais vinte galinhas deram suas vidas, em holocaustos ao grande acontecimento, por todo esse tempo, a concertina, os pífanos, o zabumba, o triângulo, a rebeca e outros bichos de fazer zoada encheram de samba e de festa a casa do pai da feliz noiva ou do pai do venturoso noivo, alternadamente. Ninguém sabe quanto foi consumido de vinho de jurubeba, licor de jenipapo e branquinha de acarape. Foi coisa pra ficar na história e por anos ser comentada.
Quem me contou o "causo" foi vovô Acelino e, mesmo fato passado, há quase um século, omito os nomes dos personagens para evitar que algum deles - ou seus descendentes - me venha puxar as orelhas. Basta que os chame de Félix e Aninha. Casados e de mãos dadas, naquele juramento que uniria até a morte, foram para o seu novo ninho, na Aba da Serra. Aninha herdara da mãe aquele gosto pelas coisas da , a dedicação ao jovem marido, o cuidado e zelo das vaidosas jovens-senhoras. Ao redor da morada, o terreiro limpo bem ciscado, um banquinho de pedra, uns canteiros de margaridas, uns pés de jasmim que subiam pelas pilastras do alpendre. Dentro, umas combucas, uns "cacos" onde vicejavam essas plantinhas dengosinhas, mimosas, que mais gostam dos ambientes sombrios. Félix, por sua vez, um mouro nos trabalhos das roças, se desdobrava em atenções e afeto à sua companheira. Leal e ativo, bravo e lutador, enchia os campos com o seu labor e sementes e os paióis da casa do que necessário fosse.
Nessa harmonia, neste mútuo e enlevado entendimento, foi a casa, também, enchendo-se de filhos. Ano após ano, surgiam novos rebentos, novas flores despontavam. Entre as roseiras e cravos, ali plantados, parecia, também, plantada a árvore da ventura. A todos enchia de inveja o congraçamento e tão forte era a união de toda aquela gente. Como eram felizes, diziam todos! O tempo, o implacável marcador de rugas e cabelos brancos, foi chegando de mansinho e deixando seus traços naquele casal que partira, um dia colocando seus sonhos acima das estrelas. E, com as rugas... coisa de nome parecido: - as "rusgas!" Pequenos desentendimentos, ligeiros bate-bocas, os chamados amuos... A velhice (que não falta aos que não morrem jovens!) foi chegando e, com ela, a irritação, os gestos neurastênicos. "Nada mais infeliz que uma velhice intranquila, sem sossego, sem paz", disse com muita senectude sem rumo, sem segurança. Não fugindo à regra geral, o nosso jovem Félix passou a ser chamado o velho Félix da Aba da Serra.
Já passava dos setenta e lá vai pedra... quando as medidas se lhe encheram da noite para o dia, saiu de casa, sem bilhete, sem recado e desapareceu. Cadê ele? O que foi que houve? todos se perguntavam e a resposta era o clássico "ninguém sabe!" A família toda, como natural, se encheu de apreensão e tristeza. Fez buscas, tentativas para encontrá-lo, mas, tudo em vão. Aninha - agora - a velha Ana - mulher de capricho e fibra, foi se conformando e esquecendo, coisa no que o tempo ajuda. Ingratidão, desamor, caduquice... cada um dava ao episódio sua classificação - pedida, ou não! O certo é que, por muito tempo, não se teve mais notícia do fugitivo. O velho resolutamente, arrumara a maca e a caíra nos "bredos".
Um dia, porém, (há sempre um dia, nessas histórias!) conversa-vai-conversa-vem, descobriram que o "exilado" tava morando em Amarante, no Piauí. Será verdade perguntavam todos, e a família se reuniu "em sessão plena", resolvendo tirar a coisa a limpo. Um "positivo", emissário de confiança, foi mandado às plagas piauiense. Você pensa foi fácil, messo numa cidade pequena, descobrir o paradeiro velho Félix? Mas, nosso investigador tinha tino de Sherlock o faro desses cães policiais de busca. Ninguém dava notícias do tal procurado. Andou, virou, mexeu, escavacou, sem perder a esperança de encontrá-lo. Na feira, por acaso, viu um menino vendendo uns "tabaqueiros", que eram a "marca registrada" do velho. De mansinho, como quem não quer, querendo, foi ao garoto. Deus-lhe uma "salivada", comprou um e terminou descobrindo onde morava o famoso artesão dos tabaqueiros.
Foi lá e, sem maior dificuldade, deu-se a conhecer e falou de sua importante missão: - levá-lo de volta à família, que chorava e reclamava sua ausência. Sentados em banquinhos de madeira, na sala, discutiram os prós e contras, os "sins" e os "senões". O velho, relutante, teimoso, sem querer voltar! A argumentação do enviado diplomático foi a mais forte e tocante: - as lágrimas e temores da família, os cometários dos amigos e não era possível que São Raimundo Nonato concordasse com aquilo! O velho se balançou nas suas bases, fez fincapé na sua trincheira... as terminou concordando em voltar. Marcado o regresso, lá se vão, pelos caminhos que trazem de volta o filho pródigo, Félix e seu anjo da guarda. Durante a viagem aquela conversa mole de amaciar coração, desanuviar espírito, trá-lá-lá... Vai nascendo, na alma do velho, aquele sentimento de renúncia, perdão, contemporização. Nada como o "lar, doce lar", argumentam os dois.
Depois de longa viagem, chegando à Aba da Serra, à porta da casa que espera o "arrependido", com um abração, separam-se os caminhantes amigos. Na mais bruta calma e serenidade, Félix pendurou a maca num torno que havia no alpendre e se sentou num banquinho, seu velho conhecido. As roupas, surradas da caminhada, os cabelos e a barba, crescidos e embranquecidos, davam-lhe um ar de ermitão dos desertos. Decorrida mais ou menos meia hora, a velha Ana apareceu, casualmente, e, debruçando-se na meia-porta de baixo deu com a figura paciente do velho marido, aquele, com o qual jurara, há mais de cinquenta anos, "marchar juntos e de mãos dadas, por toda a vida". Olhou, ironicamente, para ele e, a boca mole desdentada, a cara lambuzada de farinha, as mãos postadas na rotunda "garupa", só fez dizer: -
- Por onde tanto andou, que tão bom cabelo criou?
O velho Félix da Aba da Serra (nem sei que sentiu!) levantou-se, de vez, tirou a maca do torno e sem dizer uma palavra, novamente, meteu na estrada seus passos vigorosos e tomou rumo rumo da Paraíba. Até Hoje ninguém deu mais notícias dele. Taí em que zanga de velhos... coisinha "renitente!".
Atenção, gentil leitora, não leia o que se segue: - é pura pornografia, safadeza das mais grossas! Disse-me, certa vez, um neto do velho Félix que o que motivou a revolta e saída do seu venerável avô foi a falta de decoro e compostura de D. Ana, que, já passada dos sessenta - quando devia se dar mais a respeito! - usou, na festa de São Raimundo, um vestido curto, escandaloso, indecente que a todos mostrava as "bolachas" dos tornozelos! Tem jeito uma coisa desta?
(Garanto que você leu este pedacinho, só pela "advertência)

Dr. José Ferreira
Médico e escritor varzealegrense

de seu livro Contos estranhos

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